Por Eduardo Carli de Moraes
RESUMO: Neste trabalho na área da filosofia da educação, exploramos a inconclusão como fenômeno que se encontra na raiz da educação, apontando pontes possíveis entre as concepções de Freire e Vygotsky sobre infância, desenvolvimento, aprendizagem, ética, dialética, emancipação e revolução.
PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia do Oprimido, Ética, Dialética, Inconclusão, Educação
NOTA: Apresentado no <Congresso Internacional Freire-Vigotski> (8 a 12 de Novembro de 2021), realizado pela UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina. A apresentação oral acompanhada por slides ocorreu no “GT 3. CONCEPÇÕES TEÓRICAS E FILOSÓFICAS DO PENSAMENTO DE FREIRE E DE VIGOTSKI”, sob coordenação de Ivo Dickmann. <Apresentação de slides completa disponível on-line – click para acessar>.
“Nascer é muito comprido.”
Murilo Mendes
Não nascemos prontos nem morreremos plenamente concluídos. Se a primeira parte deste pensamento parece banal, afinal sabemos da fragilidade do recém-nascido humano e da longa trajetória de desenvolvimento e aprendizagem que ele precisará encarar durante uma infindável trajetória de socialização, a segunda parte é menos trivial: aqui afirmamos que a morte não virá nunca para encerrar um percurso existencial já terminado, ceifando uma vida já esgotada em suas potencialidades, mas sim que porá um ponto final em um processo vital de uma pessoa ainda em estado de inconclusão.
O filósofo Michel Montaigne o expressou em seu célebre ensaio sobre o filosofar como um “aprender a morrer” ao expressar sua vontade: “que a morte me encontre plantando minhas couves, mas despreocupado com ela e ainda mais com minha horta inacabada.” (MONTAIGNE: 2016) Mais cáustico ainda, Machado de Assis, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, escreveu sobre nós como “erratas pensantes”: “cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.” (ASSIS: 1881/2022, cap. XXVII)
A despeito de suas diferenças, Freire e Vygotsky são dois pensadores dialéticos que concordam na concepção do ser humano como inconcluso, dotado de plasticidade, capaz de metamorfose, criador na medida de sua inadaptação:
“Se a vida ao seu redor não o coloca diante de desafios, se as suas reações comuns e hereditárias estão em equilíbrio com o mundo circundante, então não haverá qualquer base para a emergência da criação. O ser completamente adaptado ao mundo nada desejaria, não teria qualquer anseio e, é claro, nada poderia criar. Por isso, na base da criação há sempre uma inadaptação.” (Vygotsky: 2018, pg. 42).
Neste artigo, queremos explorar o conceito de inconclusão e suas consequências para a educação emancipatória nestes dois autores, ambos cientes de que não nascemos prontos nem morremos concluídos, sendo todos nós metamorfoses ambulantes e perpétuos aprendizes (com a licença deste recurso aos poetas da música brasileira Raul Seixas e Gonzaguinha). Enquanto vivos, estamos sempre aptos à mudança e indefinidamente perfectíveis, ainda que nunca atingindo nem a perfeição nem a satisfação plenas (temas explorados também em obra de CORTELLA, 2015), sendo que está aí a própria raiz do fenômeno da educação tal como se expressa na Pedagogia do Oprimido:
“Diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da educação mesma, como manifestação exclusivamente humana, isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela tem.” (FREIRE: 2014, p. 102)
Para nossos fins, exploraremos alguns temas do âmbito da filosofia da educação e tentaremos compreender de que maneira alguns pensadores puderam impactar as concepções Freireanas e Vygotskyanas. Por exemplo, salientaremos que a noção Nietzschiana de Übermench, de complexa e multifacetada cadeia de efeitos na história do pensamento contemporâneo, através do impacto que teve sobre a vertente trotskysta do materialismo histórico-dialético, pôde também marcar uma influência sobre Vygotsky. Como apontaram Yasnitsky (2018) e Valsiner/Van Der Veer (2016), o pensador bielo-russo cita de maneira recorrente o seguinte trecho, de feições altamente nietzschianas, de Leon Trotsky:
“A espécie humana não vai parar de arrastar-se de quatro diante de Deus, dos czares e do capital apenas para curvar-se obedientemente diante das leis sombrias da hereditariedade e da seleção sexual cega! (….) O homem estabelecerá para si a meta de dominar seus sentimentos, elevar os instintos à altura da consciência para torná-los transparentes, criar pontes entre a vontade e o oculto e subterrâneo, para assim elevar-se a um novo nível – para criar um tipo biológico social ‘superior’ – um super-homem.” (TROTSKI, citado por Vygotsky, apud Valsiner/Van Der Veer, 2016, p. 69).
O fato de três de suas obras maiores – Psicologia Pedagógica, Psicologia da Arte e o Significado Histórico da Crise na Psicologia – terminarem com a evocação da figura do “super-homem”, tal como se manifesta na obra de Trotsky, leva-nos também a pensar o quanto houve uma “impregnação” Nietzschiana na obra Vygotskyana. Nos ensinamentos de Zaratustra, ao clamar ao ser humano que sempre busque superar-se, Nietzsche recusa a noção do homem atual como finalidade, meta ou consumação, isto é, sublinha o inacabamento da atual encarnação do humano. O filósofo-artista, muito focado em ser o precursor de uma filosofia do porvir, convoca-nos a uma ética para espíritos livres em que o sujeito aja como ponte sobre o abismo entre a margem da bestialidade e a margem do além-do-homem. Haveria algo desta postura também em Vygotsky?
A evidência de certos ímpetos nietzschianos em Vygotsky, ainda que filtrados por um prisma trotskysta, adensa-se ao considerarmos que a Psicologia Pedagógica dedica-se a um vigoroso comentário sobre A Genealogia da Moral em trechos como este:
“A moral deve ser considerada como certa forma do comportamento social que é elaborada e estabelecida em prol da classe dominante, e é diferente para as diversas classes. Por isso, sempre existiu a moral do amo e a moral do escravo. (…) Na rebelião de Nietzsche, todo o trabalho crítico negativo do pensamento, dirigido contra a moral burguesa, continha tamanha força explosiva que provocou a destruição dos pilares da moral cristã a partir de dentro.” (Vygotsky: 2013, p. 210-211)
Esta descrição da força disruptiva e dinamitadora da filosofia moral de Nietzsche nos conduz a considerar Vygotsky como um marxista excêntrico, um dialético idiossincrático, engajado com a tarefa de construir uma sociedade nova em que “toda herança corrupta do modo de vida anterior, da moral burguesa, deve ser definitivamente varrida da escola” (op cit, p. 211). Ou seja, o inacabamento não é característica apenas dos indivíduos, mas também das sociedades e dos sistemas educativos nelas incrustados. Isto parece entrar em harmônica consonância com o apelo de Freire em prol da superação do “modelo bancário de educação” imposto à sociedade pela hegemonia burguesa.
Já é farta, na fortuna crítica da obra Vygotskyana, a afirmação avançada por autores como Yasnitsky (2018) e Valsiner/Van Der Veer (1996) de que o idéario Übermenschiano marca em certa medida o pensamento de Vygotsky, sobretudo em Psicologia Pedagógica, onde há menção explícita à figura do “super-homem” e uma desconstrução crítico-genealógica de sistemas morais impostos sob o domínio da burguesia ou do tzarismo. Tais comentadores afirmam que Vygotsky considerava Trotsky como uma encarnação contemporânea daquela figura transvaloradora-dos-valores, superadora do homem atual, que o anti-profeta dionisíaco de Nietzsche anuncia. Além disso, é inegável o impacto de Nietzsche sobre a intelectualidade russa a partir de fins do século 19, com ressonâncias por todo o século XX e XXI, fenômeno estudado em minúcias na atualidade por uma autora como Bernice G. ROSENTHAL (2002) em livros como Nietzsche and Soviet Culture ou New Myth, New World: From Nietzsche to Stalinism.
Além disso, vale frisar que em várias obras da literatura russa, como Os Demônios de Dostoiévski ou Pais e Filhos de Turguêniev, plasma-se um difuso Nietzschianismo que poderia ter, por esta via indireta, atingido Vygotsky, um autor profundamente imerso na produção artística teatral, poética, novelística e romancística de sua época. Esta incontestável repercussão da filosofia de Nietzsche sobre a cultura russa, que marca profundamente também a obra do filósofo Lev Shestov, leva-nos a empreender um trabalho de pesquisa onde não apenas realizamos tentativas de aproximação entre Freire e Vygotsky – cientes de que explorações semelhantes estão sendo realizadas em autores como Villacañas De Castro (2016) e Alves (2002) -, mas prioritariamente buscamos sondar o que pode haver das concepções nietzschianas nos ideários do “inacabamento” que marcam nossos autores.
A pesquisa em curso já nos permite afirmar que o próprio Vygotsky foi leitor e comentador perspicaz de Nietzsche e sua obra foi marcada pela eticidade dialética do Übermench, além de também carregar eventuais reflexões sobre o conceito de amor fati (mencionado em carta que Vygotsky escreve em 6 de Julho de 1931, in: Valsiner/Van Der Veer, 1996, p. 29). Vygotsky, poderíamos dizer, interpreta Nietzsche através de seu prisma de cientista revolucionário comprometido com a causa do comunismo, fiel ao método histórico dialético, forjando uma inovadora concepção Vygotskyana-Trotskysta do Super-homem Nietzschiano.
É evidente que, nos limites deste trabalho, não trabalharemos a fundo também as discordâncias que Vygotsky eventualmente possa ter tido em sua relação com Nietzsche, autor de tendências marcadamente aristocráticas, notório anti-socialista; limitamo-nos a apontar que a transformação socialista do ser humano, à qual Vygotsky devotou os esforços de sua vida, passaria pela modificação radical-revolucionária do modo de produção e pelo enfrentamento dos desafios-dificuldades cotidianas imanentes à alienação do trabalho e suas implicações sociais, de maneira que seriam as novas formas de trabalho e de colaboração social entre os trabalhadores que forjariam o novo homem.
Ao comentar versos de Alexander Blok em que o poeta se dirige à intelectualidade russa clamando que “com todo o corpo, com todo o coração, com toda a consciência, escutem a revolução”, Vygotsky mostra-se insatisfeito com a proposta e sugere que o verso Blokiano
“não pode ser a base da educação moral, pois só o fato de escutar a revolução não leva ao contato vivo com ela, e o chamamento do poeta, aplicado às nossas crianças, deve ressoar de tal maneira que seu significado não exprima a exigência de escutar, mas de compor pessoalmente a música da revolução.” (VYGOTSKY: 2013, p. 211)
Este chamado Vygotskyano para não apenas escutar a música da revolução, mas também para compô-la, diz respeito a certas concepções deste autor sobre a educação onde o conceito de práxis ganha crucial pertinência, assim como ocorre em Paulo Freire, que concebia a práxis como síntese dialética entre teoria e prática. Vygotsky está propondo, portanto, uma pedagogia da revolução, onde a missão de educadores e de educandos é tornarem-se juntos estes compositores da música da revolução que com estrondo e “tormenta depuradora” fazem com que “estremeçam os próprios pilares da moral burguesa” que estavam “impregnadas de hipocrisia e falsidade”:
“A moral burguesa era obrigada a fingir, porque ensinava uma coisa e fazia outra, porque estava construída sobre a limitação dos interesses de classe e, enquanto apregoava o reinado de Deus no além, implantava o reino dos exploradores na Terra. A fonte natural dessa moral foi a mentira e a hipocrisia. O fariseísmo era seu inevitável acompanhante.” (VYGOTSKY: 2013, p. 210)
De alguma maneira recuperando a noção aristotélica de que “é fazendo que se aprende a fazer aquilo que se deve aprender a fazer”, Vygotsky faz apelo ao exemplo do aprendizado da natação para ilustrar sua concepção: “Como não se pode aprender a nadar permanecendo na margem e, pelo contrário, é preciso se jogar na água mesmo sem saber nadar, a aprendizagem é exatamente igual, a aquisição do conhecimento só é possível na ação…” (op cit, p. 296) No mesmo sentido, apelando ao exemplo do caminhar da criança, o autor afirma que trata-se de aprender com as próprias pernas e com as próprias quedas: ninguém aprende a andar através de aulas teóricas!
“Não é possível uma criança aprender a caminhar por meio de aulas, nem com a mais cuidadosa demonstração da marcha artística de um professor. Deve-se impulsionar a própria criança a andar e cair, sofrer a dor dos machucados e escolher a direção. E o que é verdade com relação a caminhar – que só se pode aprender com as próprias pernas e com as próprias quedas – também pode ser aplicado a todos os aspectos da educação.” (VYGOTSKY: 2013, p.299)
Aprende-se a nadar jogando-se na água, a andar de bicicleta pedalando-a com eventuais tombos, e a caminhar fazendo uso das próprias pernas ao invés de pelo estudo um tratado teórico. Tudo isto aponta para uma educação calcada no concreto, atenta ao meio sócio-cultural onde estamos imersos, e onde uma concepção sobre nosso organismo, sobretudo nosso cérebro e sistema nervoso, emergem e apontam para uma inconclusão repleta de “possibilidades não realizadas”:
“Nosso sistema nervoso lembra as portas estreitas de um grande edifício, em direção às quais a multidão se lança num momento de pânico; pelas portas cabem só algumas pessoas – as que tiveram a felicidade de cruzá-las são um número reduzido entre os milhares que pereceram pisoteados. (…) O comportamento que de fato se realiza é uma parte insignificante dos comportamentos possíveis. Cada minuto do homem está cheio de possibilidade não realizadas.” (VYGOTSKY: 1991 “O Significado Histórico da Crise da Psicologia”)
Vygotsky não se filia ao mito da infância feliz, não tem a ingenuidade de crer numa criança que aprenderia na ausência do sofrimento, da frustração, das quedas e machucados. Eis outro elemento que o aproxima de Nietzsche – uma concepção que abraça a tragicidade da existência humana desde suas primeiras etapas:
“A infância é uma etapa de enorme matiz trágico, de falta de harmonia e de correspondência entre o organismo e o ambiente. A música da educação surge da pugna para resolver uma dissonância. (…) O mais poderoso motor da educação é o aspecto trágico da infância, como a fome e a sede são inspiradoras da luta pela existência. Por isso, a educação não deve ocultar nem velar os duros traços do autêntico ‘desconforto’ da infância, mas fazer a criança enfrentá-lo da forma mais aguda e frequente possível e estimulá-la a vencê-la. (…) Ao mesmo tempo, a vida vai se revelando como um sistema de criação, de permanente tensão e superação, de constante combinação e criação de novas formas de comportamento.
Assim, cada ideia nossa, cada um de nossos movimentos e vivências, constituem a aspiração a criar uma nova realidade, o ímpeto para a frente, rumo a algo novo. O processo de educação perde seu caráter feliz e pacífico de preocupação com a criança e de ‘ajudar a natureza’ que lhe era atribuído anteriormente: ele é descoberto como processo dialético e trágico de desaparecimento permanente de certas possibilidades sociais às custas da realização de outras, de uma constante luta das diferentes partes do mundo pelo organismo e dentro deste, dos incessantes conflitos entre as forças mais diversas dentro do próprio organismo. (…) A necessidade da educação surge, conforme a expressão de Thorndike, do fato de que ‘o que existe não é o que deveria existir’. Por isso, a educação sempre denota uma modificação e, portanto, a negação de certas formas de comportamento em prol da elaboração e do triunfo de outras… é profundamente correta a tese que coloca o caráter trágico desse processo, comum a todos os demais processos da vida. ‘Sem dor não ocorre nem o nascimento de uma criança nem o nascimento de uma estrela.’” (VYGOTSKY: 2013, p. 303 e 278)
Sem dor não nascerá tampouco a nova sociedade comunista, que necessita também ela de uma educação renovada, que rompa com os cânones e dogmas vigentes sob o tzarismo, superando também o “caráter classista” imposto à educação em todas as sociedades fundadas na luta de classes:
“Devemos levar em consideração que a educação sempre e em todas partes teve um caráter classista. Basta recordar o sistema de instrução que imperava na escola Czarista russa, o qual criava ginásios e universidades para a nobreza, colégios secundários para a burguesia urbana, asilos e escolas de ofícios para os pobres. Basta lembrar o tipo de pessoas insignificantes e indolentes, covardes diante da vida, totalmente inúteis, que eram produzidas pela educação Czarista, para a qual a repressão do Instinto era fundamental. Todo o potencial da criação humana, o mais alto florescimento do gênio, não são possíveis no solo raquítico e anêmico da destruição dos instintos; pelo contrário, devem provir de seu florescimento total e da tensão repleta de vida de suas forças.” (VYGOTSKY: 2013, p. 81 e 92)
Neste trecho, novamente pode-se sentir um ímpeto Nietzschiano, uma vez que Vygotsky combate aqui o ideal ascético em que “a repressão do Instinto é fundamental” e defende que o gênio está conectado ao “florescimento total e à tensão repleta de vida de suas forças”, algo que ecoa a noção de Nietzsche a respeito da fecundidade intelectual e artística consistir num estado “rico em contradições”, como expressa no Crepúsculo dos Ídolos:
“Só se é frutífero à custa de se ser rico em contradições; só se permanece jovem com a condição de a alma não se diluir, não desejar a paz […]. Nada se nos tornou mais estranho do que o outrora ansiado, a «paz da alma», a aspiração cristã; nada nos desperta menos inveja do que a vaca moral e a felicidade untuosa da boa consciência. Renunciou-se à vida grande quando se renunciou à guerra.” (NIETZSCHE: 2017. In: “A Moral como Contra-Natureza”, 3)
Além de destacar a tragicidade da infância, o autor bielo-russo também frisou sempre a historicidade desta etapa da existência: como destacou Barbara Rogoff em obra que explora A Natureza Cultural do Desenvolvimento Humano, Vygotsky “argumentou que ao invés de revelar a ‘criança eterna’, a tarefa era descobrir ‘a criança histórica’” (ROGOFF: 2003, p. 10). Esta concepção implica que não há infância de características imutáveis, estando esta sempre incrustada em condições sócio-históricas variáveis de acordo com a cultura reinante no meio onde a criança inconclusa e metamórfica existe e convive.
É neste contexto que emergem concepções vygotskyanas sobre o educador como um jardineiro, possivelmente inspiradas por Froebel (o criador dos “jardins de infância” ou kindergardens), sobretudo veiculadas no início da década de 1920, em que o autor sustenta que o professor irá agir de maneira a organizar o jardim escolar para que as crianças possam desabrochar. Assim como o jardineiro influencia o crescimento da flor através de uma intervenção no meio ambiente, o educador faz o mesmo ao mudar o meio em que o educando está imerso. Como explica Facci:
“Em Psicologia Pedagógica, o psicólogo russo comparou o trabalho do pedagogo com o do jardineiro que, como tal, não poderia influenciar os crescimentos das plantas. O jardineiro, ‘aumentando a temperatura, regulando a umidade, mudando a posição das plantas vizinhas, selecionando e misturando a terra e o adubo, ou seja, agindo indiretamente através de mudanças correspondentes do meio’. Para ele é assim que atua o pedagogo, ‘mudar o meio para educar a criança.” (FACCI: 2019, p. 95)
Facci afirma que Vygotsky superou posteriormente estas concepções acerca da “jardinagem” educacional, em que a práxis pedagógica intervêm sobretudo sobre o meio circundante, em prol de uma práxis pedagógica mais ampla, focada na importância da apropriação de conceitos científicos pelos educandos, tornando estes aptos à criticidade que permitirá aos sujeitos “fugir das amarras da alienação” (FACCI: op cit, p. 102). No entanto, podemos dizer que Vygotsky não cessou de pensar a “floração” humana, o desabrochar do desenvolvimento e da aprendizagem, utilizando metáforas do jardim e do pomar, quando posteriormente desenvolve suas noções acerca da Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP).
Como frisam Newman e Holzman na obra Cientista Revolucionário (1993, p. 72), Vygotsky afirmava que “o estado do pomar não pode ser avaliado somente pelos frutos maduros ou colhidos da macieira”, pois as árvores em amadurecimento, inconclusas, com o potencial de frutos por vir, servem como metáfora dos jovens em processo sintético e retroalimentado de desenvolvimento-aprendizagem.
Para falar na linguagem de Freire, que possui muitas afinidades com este ideário Vygotskyano, somos seres inconclusos em permanente movimento de busca do ser-mais. Nós, seres humanos, somos educáveis justamente pois podemos ultrapassar ou superar aquilo que estamos sendo. O que vale para os indivíduos mas também para as coletividades que eles integram. Assim como “não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade profundamente doente”, como ensina Krishnamurti, também podemos entrar em ressonância com Freire e Vygotsky ao dizer que nossa inconclusão e inadequação à esta sociedade onde reinam opressões é a raiz de nossa potencialidade criadora e inventiva, em que forjamos juntos nosso ser-mais.
Como ensina também a Pedagogia do Oprimido, clamando por uma educação em prol da emancipação, da transformação social, da mudança radical dos sujeitos, é preciso superar o modelo bancário de educação em prol daquele outro, alternativo e proposto pelo andarilho da utopia pernambucado, que promove a infindável criticidade e problematização:
“Enquanto a concepção bancária dá ênfase à permanência, a concepção problematizadora reforça a mudança. A prática bancária implica imobilismo e se faz reacionária, enquanto a concepção problematizadora, não aceitando um presente bem-comportado, não aceita igualmente um futuro pré-dado, enraizando-se num presente dinâmico, se faz revolucionária. A educação problematizadora, que não é fixismo reacionário, é futuridade revolucionária.” (FREIRE: 2014, p. 102)
Assim se conclui que Vygotsky e Freire foram ambos críticos radicais dos sistemas de educação hegemônicos, estiveram unidos pela dialética em uma apreciação marxista desta problemática, e propuseram uma práxis que visa a superação das limitações, deformações e injustiças do aparato educacional – que também inclui o condicionamento comportamental que normalmente subsumimos sob o termo “moral”. Vygotsky, muito inspirado também por um certo Nietzschianismo “filtrado” pelo Trotskysmo, pôde propor uma revolução que também era moral, e nisto aproxima-se de Freire, praticante de uma pedagogia calcada na ética da dialogicidade perpétua, criadora de inéditos viáveis, que abraça a inconclusão humana como convite para a auto-superação constante das formas, na travessia sem fim rumo à invenção conjunta do socialismo democrático. Paulo Freire ensina-nos sobre o
“direito que tem o ser humano de comparecer à História não apenas como seu objeto, mas também como sujeito. O ser humano é, naturalmente, um ser da intervenção no mundo… Inacabado como todo ser vivo – a inconclusão faz parte da experiência vital -, o ser humano se tornou, contudo, capaz de reconhecer-se como tal. A consciência do inacabamento o insere num permanente movimento de busca… Só o ser inacabado, mas que chega a saber-se inacabado, faz a história em que socialmente se faz e se refaz. (…) Aí radicam, de um lado, a sua educabilidade, de outro, a esperança como estado de espírito que lhe é natural.” (FREIRE, 2020, p. 139)
Somos seres vivos condenados à finitude e à inconclusão. Somos os únicos animais cientes de seu inacabamento, o que os move à permanente busca em que se enraiza o processo educativo – que também não pode ser concebido senão como processo permanentemente recomeçado, nunca acabado. Nunca terminamos de aprender nem de ensinar. Se nossa educação não pode nem deve acabar nunca, nossas lutas contra a opressão tampouco. Recusar-se a participar do mundo comum, cruzar os braços e nada fazer, em apego a um apático conformismo, é uma ofensa que realiza-se contra nossa vocação ontológica de ser-mais.
Juntos, coligados, nas lutas contra a multiplicidade de opressões que nos esmagam, solidários no ímpeto de rebeldia criativa contra um mundo caduco, é que mais faremos rebrilhar o ser-mais que está entre os nossos possíveis. Freire, portanto, é o sábio ensinador das lógicas do in: intervenção, inserção, interação, inconclusão. O ser inacabado, na ciência de seu inacabamento, e que de maneira socrática tem a consciência de suas ignorâncias e o conhecimento da extensão de seu desconhecimento, sai em busca interminável de uma inter-educação, dialógica e mutuamente instrutiva.
Em sua “radical recusa à ordem desumanizante”, Paulo Freire afirma a necessidade do pensamento e da práxis utópicos e, em sua Pedagogia da Indignação, afirma que nossa ações culturais e pedagógicas
“devem se achar ‘ensopadas’ de fortes convicções ora explícitas, ora sugeridas. A convicção, por exemplo, de que a superação das injustiças que demanda a transformação das estruturas iníquas da sociedade implica o exercício articulado da imaginação de um mundo menos feio, menos cruel. A imaginação de um mundo com que sonhamos, de um mundo que ainda não é, de um mundo diferente do que aí está e ao qual precisamos dar forma… Gosto de ser gente porque o mudar o mundo é tão difícil quanto possível.” (PAULO FREIRE, 2021, p. 43)
O que o mundo exige de nós, como Marx já o dizia, não é apenas sua compreensão, mas sua transformação. E para cumprirmos esta meta é preciso que tenhamos a coragem de sempre denunciar e anunciar. A unidade dialética entre a denúncia da realidade conspurcada por opressões multiformes e o anúncio de um outro mundo possível (que não é somente sonhado, mas criado pela coletividade em conjunto, através do trabalho de parto de um outro-real), é um dos legados mais preciosos deste sábio que foi Paulo Freire. Relembrar como foram seus <últimos dias e palavras entre os vivos – com o impacto que ele sentiu, em 1997, diante das mega-marchas do MST e do crime hediondo contra Galdino em Brasília> – é também reavivar a chama de um pensador da práxis que insistiu sempre: o que a vida exige de nós é a valentia de amar.
Inconclusos, imperfeitos, inacabáveis, inserimos nossos corpos históricos num processo educativo em que é preciso, como sugere Gonzaguinha, “cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz”, mesmo que saibamos que a vida finita e efêmera que é reservada, a cada um de nós e a todos, terá um ponto final em que se entrega à morte uma obra inacabada.
Eduardo Carli de Moraes
SOBRE O AUTOR: Professor de filosofia do IFG; doutorando na FAFIL-UFG; iIntegrante do grupo de estudos inter-institucional Verchína: Fundamentos da Psicologia Vigotskiana; criador d’A Casa de Vidro (website) e de seu ponto de cultura (Goiânia). Contato: eduardo.moraes@ifg.edu.br.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Ed. Antofágica: 2022.
CORTELLA, M. S. Não Nascemos Prontos!. Vozes Nobilis: 2019. 19a ed.
FACCI, M. G. D. “Para além do escolanovismo em Vygotsky: compreendendo o trabalho do professor na obra Psicologia Pedagógica”. In: FACCI, TULESKI, BARROCO. Escola de Vygotsky – Contribuições para a psicologia e a educação. Maringá: UEM, 2019.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 58ª ed. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2014.
—————. Pedagogia da Esperança. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2020.
—————. Pedagogia da Indignação. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2021.
HOLZMAN, L; NEWMAN, F. Lev Vygotsky – Cientista Revolucionário. 2a ed, Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Loyola, 2014.
MONTAIGNE, M. Que filosofar é aprender a morrer e outros ensaios. L&PM, 2016.
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
ROGOFF, Barbara. The Cultural Nature of Human Development. Oxford University Press, 2003.
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YASNITSKY, A. Vygotsky – An Intellectual Biography. Routledge, 2018.
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Publicado em: 12/10/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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